O ambiente silencioso de um quarto e a aparente segurança de estar em casa podem esconder perigos reais e devastadores. É o que revelam os dados e os relatos sobre o tráfico de pessoas praticado por redes criminosas que se aproveitam da internet para aliciar, controlar e explorar vítimas, especialmente as mais vulneráveis.
Em Mato Grosso do Sul, o alerta se intensifica neste fim de mês, com o 30 de Julho, data em que se celebra o Dia Mundial, Nacional e Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. De acordo com dados da SaferNet Brasil, o número de denúncias de conteúdos suspeitos envolvendo tráfico de pessoas mais que dobrou em três anos: foram 2.976 registros entre 2022 e 2024, contra 1.177 no triênio anterior, o que representa um aumento de 152%.
O canal www.denuncie.org.br recebe as denúncias, que são encaminhadas ao Ministério Público Federal. Em 2023, o MPF determinou a remoção de 278 páginas na internet com conteúdo relacionado ao crime.
Em Mato Grosso do Sul, a data é reconhecida oficialmente desde 2023 por meio da Lei Estadual 6.083, que também criou a Campanha Coração Azul, realizada anualmente na última semana de julho. “O tráfico de pessoas é um crime silencioso, cruel e bilionário, que destrói vidas e famílias”, afirma o deputado estadual Gerson Claro (PP), autor da norma.
Ele ressalta o uso crescente da internet pelos aliciadores, muitas vezes disfarçados de recrutadores oferecendo falsas oportunidades. “É fundamental alertar a população, principalmente os jovens, sobre os riscos do ambiente virtual”, disse o parlamentar.
A preocupação com o tema é reforçada por dados do novo Painel de Dados e pelo Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas, ambos lançados este mês pelo MJSP (Ministério da Justiça e Segurança Pública). Segundo o relatório, 78% dos entrevistados que atuam na prevenção e combate ao crime afirmam que a internet é usada pelas redes de tráfico, principalmente para o recrutamento de vítimas.
As redes sociais foram citadas como meio de aliciamento em mais da metade dos casos de tráfico para fins de exploração sexual (52%). Já no tráfico para trabalho em condições análogas à escravidão, a internet aparece como o segundo meio mais usado (26%), atrás apenas do aliciamento por conhecidos ou amigos de amigos (28%).
Para a defensora pública Thaisa Raquel Defante, coordenadora do Núcleo Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP/MS), o celular pode se tornar a porta de entrada para a ação de criminosos. “Você não deixaria seu filho andar sozinho numa avenida movimentada à noite. Mas e na internet? Não é igual ou até pior?”, questiona.
Ela também coordena o Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul e integra o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Thaisa explica que a atuação virtual dos traficantes é extremamente personalizada: “Eles atingem as vítimas por meio da emoção, da vontade, do sonho. Pode ser alguém que deseja trabalhar fora do país, ser bailarina, jogador de futebol. E então surge alguém oferecendo tudo isso, ganhando a confiança da pessoa. No final, ela percebe que foi vítima de tráfico”.
A defensora pública alerta ainda para o uso irrestrito da internet por crianças e adolescentes. “Você acha que seu filho está seguro ao seu lado, mas ele pode estar falando com um aliciador e você nem sabe. Às vezes, apagam a conversa e os pais nem tomam conhecimento”, ressalta. “Não podemos negligenciar esse cuidado. A internet é uma ferramenta usada para crimes”, adverte.
O tráfico de pessoas é crime previsto no Código Penal, que engloba condutas como agenciar, recrutar, transportar ou alojar pessoas mediante ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com fins como a exploração sexual, remoção de órgãos, trabalho análogo à escravidão, servidão ou adoção ilegal.
Dados do relatório nacional indicam que as redes criminosas exploram diferentes vulnerabilidades das vítimas. Entre os fatores mais mencionados por profissionais que atuam na área estão a pobreza (22%), baixa escolaridade (18%), condição de migrante ou refugiado (14%), ser mulher (13%), ser pessoa preta ou parda (12%), crianças e adolescentes (9%) e pessoas LGBTQIA+ (8%).
Em Mato Grosso do Sul, o NETP/MS — vinculado ao Ministério da Justiça — atua nos eixos de prevenção, atendimento às vítimas e repressão. “O enfrentamento exige o trabalho articulado de toda a sociedade, com atenção redobrada à internet, que é veloz e propícia para a atuação dos criminosos”, afirma Thaisa.
Ela reforça a importância da denúncia, que pode ser feita de forma anônima pelo Disque 100, Disque 180 ou pelo site www.denuncie.org.br. “Se tiver qualquer suspeita, denuncie. Não espere acontecer com alguém próximo para agir”, orienta.