A Câmara Municipal de Campo Grande realizou, na manhã deste sábado, uma audiência pública que marcou um momento histórico para o debate sobre moradia indígena em contexto urbano, especialmente voltado às famílias do povo Kadiwéu em Campo Grande. Presidida pela vereadora Luiza (PT), o encontro reuniu lideranças indígenas, representantes de órgãos públicos, movimentos sociais e apoiadores da causa, reforçando a urgência de políticas habitacionais que considerem as especificidades culturais e econômicas desses povos.
Atualmente, mais de 50 famílias Kadiwéu vivem dispersas em diferentes regiões de Campo Grande — muitas delas em casas alugadas, compartilhando um mesmo endereço entre várias famílias. Segundo Vilma Ferraz, representante das mulheres Kadiwéu, o levantamento realizado pela comunidade indica que aproximadamente 70 famílias da etnia estão na área urbana da capital. “Nosso foco hoje é primeiramente conquistar um terreno que possa acolher todas as famílias, para termos uma aldeia urbana aqui. Muita gente não quer abandonar o trabalho ou a escola dos filhos para morar longe. A maioria está aqui buscando educação e melhores oportunidades”, afirmou.
Durante a audiência, os representantes Kadiwéu apresentaram a proposta de construção de 50 casas com uma nova concepção de moradia, que agregue valores culturais e sustentabilidade econômica. A ideia é criar um projeto coletivo, nos moldes de uma agrovila urbana, que possibilite à comunidade manter seus ofícios tradicionais e gerar renda a partir deles. “Conseguimos a casa, mas não conseguimos pagar. Queremos um modelo que nos permita trabalhar com a nossa matéria-prima ancestral, preservar o ofício que herdamos de nossos pais — que faziam tambores, flautas, instrumentos da nossa cultura”, destacou Luiz Fernando Matchua, liderança Kadiwéu.
A cacique do povo Kadiwéu reforçou que a comunidade mantém viva sua cultura, especialmente por meio da pintura tradicional, símbolo de resistência e identidade. As lideranças defendem que o projeto habitacional siga um modelo de condomínio com muro apenas externo, permitindo integração e convivência entre as famílias, e que não gere impacto tributário sobre o IPTU, considerando a natureza comunitária da proposta.
A vereadora Luiza Ribeiro, que mediou a audiência, destacou a importância do debate ocorrer em um sábado, permitindo a ampla participação das comunidades. “A Câmara inaugura hoje um momento importante, ao abrir esse espaço de escuta e construção coletiva sobre o direito à moradia indígena em contexto urbano, bem como a criação de uma Coordenação, ou pasta similaires dentros dos poderes municipal, estadual e federal destinados aos povos indígenas em contexto urbano, pois no momento é inexistente”, afirmou.
Entre as participações institucionais estiveram Lisio Lili, do Conselho Municipal de Direitos e Defesa dos Povos Indígenas; Willyan Tayrone, representante da Agehab (Agência de Habitação Popular de MS); Jorge Pereira, representante da Funai (Fundação dos Povos Indígenas); e Arceniel Francisco, da Prefeitura de Campo Grande.
Maria José, da Pastoral Indigenista da Igreja Católica, relembrou a luta dos povos Terena pela conquista da Aldeia Urbana Imaty Kaxé iniciada em 2008 e consolidada em 2014. “Essa história deve inspirar o povo Kadiwéu a seguir firme na busca pela sua moradia. A cidade precisa reconhecer que o direito à terra também é urbano”, afirmou.
Durante o debate, Jorge Pereira (Funai) defendeu a criação de uma Coordenação de Indígenas em Contexto Urbano, dentro da estrutura da Funai, para tratar das demandas específicas das populações indígenas que hoje vivem nas cidades. Ele também propôs a qualificação das reivindicações fundiárias e a abertura de diálogo com a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), visando identificar áreas da União que possam ser destinadas à moradia indígena.
A Agehab, representada por Willyan Tayrone, reconheceu que não há recursos específicos no momento, mas se comprometeu a desenvolver um plano de estudo para incorporar as reivindicações apresentadas. A liderança Luzia propôs que os indígenas tenham pontuação diferenciada nos programas habitacionais estaduais e municipais, com atenção especial às mulheres indígenas e às especificidades culturais do modo de vida coletivo.
“O conceito de casa não se limita a parede e teto, mas envolve viver em harmonia, unindo saberes técnicos e saberes ancestrais”, ressaltou o mestre Gabriel Gonçalves, presente no encontro. Já Suzy Guarani sugeriu a criação de um Conselho de Acompanhamento da Moradia Indígena Urbana, responsável por estabelecer cotas, metas e ampliar o acesso à informação sobre cadastros e programas habitacionais.
A audiência contou ainda com a presença de Lucas de Luca, representante da deputada federal Camila Jara, que reforçou o apoio da parlamentar à continuidade do debate. A vereadora Luiza Ribeiro informou que a discussão integra o processo de construção de políticas públicas e que as Audiências seguem ao longo do mês de novembro.
