Viviane Luiza, hoje secretária da recém-criada pasta da Cidadania, conta que quando adolescente ao chegar em casa desanimada sua mãe a perguntou quantos carros da cor vermelha ela tinha visto pelo caminho. Ela respondeu que não sabia dizer, mas que provavelmente tinha passado por alguns. E a mãe respondeu, então, que as oportunidades são como os carros vermelhos, que às vezes, podem passar sem que a gente perceba.
Para a nova secretária de Estado da Cidadania, Viviane Luiza da Silva, empossada no cargo no último dia 3 de janeiro, e mestre em Desenvolvimento Local pela UCDB (Universidade Católica Dom Bosco) e Ph.D. em Antropologia pela University of Manitoba, no Canadá, as oportunidades aparecem quando a cidadania é exercida como política pública.
A nova pasta é fruto do desmembramento da, até então, Setescc (Secretaria de Turismo, Esporte, Cultura e Cidadania), na qual Viviane Luiza era secretária-adjunta. A SEC (Secretaria de Estado de Cidadania), criada em dezembro de 2023, já nasce com oito subsecretarias (Povos Originários, Juventude, LGBTQIA+, Pessoas com Deficiência, Pessoas Idosas, Assuntos Comunitários, e Atendimento à Mulher), que estavam abrigadas na Setesc, mas têm vínculo temático com o eixo da Cidadania.
Em seu discurso de posse, declarou que a cidadania tinha saído do dicionário e se tornado a primeira secretaria do País dedicada, exclusivamente, a gerar emancipação e pertencimento.
Vindo de uma família pobre, Viviane soube “embarcar” nas oportunidades que a vida lhe foi apresentando, e assim, como ela mesma define, se agarrando aos estudos como uma ferramenta transformadora de uma realidade da menina criada na periferia da capital de Mato Grosso do Sul.
O currículo da secretária Viviane Luiza é vasto e rico. Como pesquisadora do Museu de Etnografia de Viena, a nova secretária sul-mato-grossense contribuiu para três projetos relevantes na etnografia do Brasil: Natterer, Patrimônio Bororo e Mario Baldi, destacando-se como co-autora no livro “Mario Baldi – Fotógrafo austríaco entre Índios Brasileiros”.
Já como idealizadora de centros culturais em comunidades indígenas, Viviane Luiza tem contribuído para a promoção e fortalecimento da cultura material e imaterial por meio de objetos indígenas, além de desempenhar papel crucial no assessoramento para a criação de associações das mulheres artistas indígenas nas comunidades Kadiwéu e Terena, impulsionando a economia sustentável.
Na entrevista abaixo, a secretária Viviane descreve como foi esta construção até chegar nas especializações e experiências fora do Brasil e qual o trabalho sugerido à frente da nova Secretaria de Cidadania.
Secretária, quem é a profissional e a pessoa Viviane Luiza?
A profissional é uma construção da Viviane Luiza como pessoa. Como eu disse no discurso de posse, eu venho de uma família de origem muito pobre. E a construção da Viviane Luiza e profissional vem de todo o trabalho e reconhecimento por meio dos meus pais, que me orientaram na vida em relação a ética, a ser determinada e não desistir na primeira porta fechada. E a Viviane profissional vem dessa junção, da menina lá dos Rouxinóis, de uma família mineira, que se mudou para São Paulo. Eu nasci em São Paulo e em 2023 completei 40 anos de Mato Grosso do Sul. Então, eu tenho nas minhas origens, raízes humildes e pobres, E nós nos víamos assim, à margem da sociedade. E eu acredito muito, até hoje, que o estudo pode abrir as portas. Certamente, não são todas as pessoas que estudam que as portas estão abertas.
A minha mãe sempre dizia que as oportunidades podem passar e as pessoas podem não percebê-las porque estamos com uma névoa da exclusão social. Para gente olhar as oportunidades independente de onde elas apareçam e que nós precisávamos estar sensíveis as portas que se abrissem.
A profissional Viviane veio dessa construção de trabalho desde os meus 14 anos, acreditando que eu poderia fazer a diferença, até então, apenas na minha vida.
Foi quando eu descobri a política pública, quando eu consegui o passe de estudante e que me permitiu ir para uma outra escola privada. Esta possibilidade de política pública, do passe estudantil, chegou lá no meu bairro. Nem acreditávamos que seria possível e foi assim que eu rompi algumas ideias de que a pobreza poderia ser a grande limitação da minha vida.
Então, foi assim que comecei a seguir o caminho do estudo e do trabalho. Cursei História e me lembro até hoje quando meu pai me perguntou o que eu queria com o curso de História, olha só?!
A construção tem a ver com esta colcha de retalhos que a vida vai costurando. As vivências e experiências nos moldam. E foi assim que cheguei até a graduação em História, acreditando muito nas Ciências Sociais, no desenvolvimento humano, fazendo estágio no Museu do Dom Bosco, conhecido como Museu do Índio, onde me permitiu galgar os passos, que eu trilhei até hoje na minha vida profissional, passando pelo doutorado em Antropologia.
Desde aquele momento, em 2004, trabalhando com as políticas públicas nas comunidades indígenas, seja no Mato Grosso, no Norte do Brasil e aqui no Mato Grosso do Sul, até ser convidada pelo Museu de Viena para ser uma das pesquisadoras para fazer a identificação de materiais coletados em terras brasileiras por mais de 30 anos, no Brasil Império. Trabalhei lá de 2008 a 2012 fazendo toda a catalogação de peças brasileiras.
Secretária, qual fato ou cena a deixa indignada, choca e te motiva a pensar: isto tem que mudar?
Sempre digo ao governador Eduardo Riedel, enquanto secretária de Estado, que há muita possibilidade de fazer diferente. O que mais me motiva é a possibilidade de fazer a diferença na vida das pessoas nas periferias, das comunidades quilombolas, dos indígenas, das mulheres, me vendo como uma mulher e tão determinada e percebendo que é possível fazer bem feito, fazer diferente, pra fazer dar certo. Olhar os recortes, os grupos sociais e perceber uma gama de possibilidades.
O plano do Governo é o crescimento do Estado integrado com o desenvolvimento humano, sem deixar ninguém para trás. Esta é uma máxima que me move porque isto é cidadania. Quando o governador Riedel fala esta frase é olhar para todos os grupos sociais que nos fazem sul-mato-grossensenses.
Como já mencionado na sua formação, a senhora teve experiências fora do Brasil. Existem convergências entre a política aplicada nos países em que você atuou e o Brasil?
Sim. Quando olhamos as possibilidades, especificamente, no Mato Grosso do Sul, percebo uma transformação social como ocorre, por exemplo, no Canadá, com a prevenção contra o feminicídio, contra o preconceito, ou seja, as políticas públicas que podem antecipar algo que nós poderíamos depois dizer que não é mais a prevenção, e sim, a solução de um problema.
É trabalhar as políticas públicas que temos aqui junto com todos esses recortes sociais, e isso é a cidadania de uma forma de unidade. E esta é uma experiência que vejo também dentro dos Estados Unidos, onde passei quatro anos e fiz parte de um conselho de cidades, que era a unidade Cidadania. E não trabalhar em segmentos, mas a unidade, o ser humano, o cidadão e a cidadã daquele espaço e as demandas sugeridas pelas pessoas. E não apenas pelo gestor público.
Eu vejo isso muito próximo do nosso Mato Grosso do Sul e do Brasil. Como experiência aqui no Estado, vejo muito a questão da prevenção e olhar as políticas públicas eficazes para isso seja atingido a atenção plena a cada pessoa sul-mato-grossense.
Secretária, a senhora afirmou que a Cidadania saiu do dicionário. Mas, como ela é exercida e como incentivá-la? E o que é Cidadania? Quais os profissionais a pasta irá colocar à disposição e à frente das políticas públicas?
Eu tenho falado internamente e para outros órgãos do Governo que nós somos quatros entes: Judiciário, Legislativo, Executivo e o Civil – a sociedade. E é para ela que trabalhamos e que sinta a gestão pública para um mundo mais equitativo e um Mato Grosso do Sul onde as pessoas se sintam pertencentes a esta cidadania.
Se formos buscar a palavra no dicionário nada mais é que o exercício social, a garantia dos direitos e dos deveres. Mas, é muito além disso. É o exercício do dia a dia, o “somos”. Sou eu, você, somos todos que fazem com que a sociedade seja e se sinta pertencida e que trabalhe para o bem comum.
Sobre o que os profissionais disponíveis na pasta, nós temos oito subsecretarias. Desde o início de 2023, no início da nossa gestão trabalhamos para fazer a diferença dentro destes grupos sociais e movimentos que se olham e se sentem pertencidos à essa pasta. Desta forma, traçamos um planejamento com profissionais, seja matemáticos, assistentes sociais, pós-graduados em gestão pública trabalhando na transversalidade com todas as pastas. Profissionais para olhar as diferenças e sermos iguais.
Em outros Estados também existem secretarias exclusivas para as mulheres, negros e outros grupos. Qual a diferença entre elas e a nossa Secretaria de Cidadania?
É a unidade. Porque se nós pensássemos em secretarias exclusivas de oito representatividades ainda não estaríamos tudo dentro da Cidadania. Porque nós temos o homem, a criança, os brancos…Então, essa Secretaria de Cidadania é a unidade. Ela trabalha, sim, os recortes e os grupos sociais, mas pensando o todo. Olhar o cidadão e a cidadã e trazê-los como unidade. Nós somos cidadania.
Trabalhamos os recortes para que tenhamos mais equidade, inclusão social e desenvolvimento humano. Como eu disse, temos quatro entes, e o quarto é o mais importante: o cidadão e cidadã.
De que forma a Secretaria da Cidadania vai colocar a transversalidade em prática com as demais pastas? Já estão previstas ações em conjunto e quais?
Já, sim. Estamos trabalhando desde o ano passado em conjunto com a Semadesc (Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação) e Funtrab (Fundação do Trabalho) no desenvolvimento de uma tecnologia social, que foi um projeto piloto junto com as mulheres vítimas de violência e que são atendidas na Cidadania, no Centro Especializado em Atendimento às Mulheres. E neste projeto, olhamos cada mulher, cada especificada, cada anseio desta mulher que procurou o serviço do Estado. E trazendo, então, junto à Semadesc e Funtrab para aplicar esta ação, que é uma entrega de cidadania, com indicadores, números, ou seja, fazendo a articulação e a mediação com cada cidadã e grupo social, e trazendo às pastas esses anseios e colocando em prática a “unidade Governo”, trabalhando para todos e com todos.
Eu digo que o nosso dever enquanto Cidadania e Assistência Social é olhar o todo e entender como nós podemos trabalhar para estes grupos mais vulneráveis saiam da “faixa vermelha”.
Nós conseguimos desenvolver um programa chamado “Cidadania em Rede”, na qual trabalhamos essa transversalidade.
Mas, voltando aos temas Cidadania e Assistência Social, eu sempre utilizo o exemplo do atendimento dentro de um hospital. Quando damos entrada por algum motivo de saúde no hospital, nos deparamos com as alas: vermelha, que é a de risco e emergência. Temos as alas amarela, laranja e verde. A Assistência Social é o grupo que trabalha com os grupos de extrema vulnerabilidade e que está com a pulseira vermelha, que é cuidado, uma atenção plena. E os demais com pulseira laranja, a Cidadania está ali para mudar esta pulseira de amarela para verde e trazendo todos os recursos do Governo junto com os seis eixos de ação (Sensibilização e Conscientização; Ampliação e fortalecimento da Rede de Atendimento; Capacitação continuada e permanente; Garantia de direitos e acesso à Justiça; Governança e Intersetorialidade; e Inserção Econômica) e os links com as ODS´s (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU) para que tenhamos uma edificação e as pessoas entendam a diferença entre Cidadania e Assistência Social.
A Cidadania é o direito pleno, que passa pela Saúde, Educação, Segurança Pública, ou seja, ela transita entre todas as pastas. E com este olhar muito peculiar que é a Cidadania. A pasta da Cidadania é intersetorial, interministerial e otimiza os serviços públicos e a gestão pública de uma forma mais eficaz e humana e para que todos se sintam pertencentes ao governo.
A Secretaria da Cidadania vem carregada de simbolismos e causas caras, contra o preconceito em geral e em defesa da mulher, indígenas, negros, idosos, gays, e outros grupos. Na sua opinião como o Estado deve combater e coibir práticas criminosas?
Desde o ano passado, quando olhamos os relatórios sobre preconceitos, feminicídio, abusos e violência, percebemos que era preciso criar um programa. E ele foi incluído no PPA (Plano Plurianual) 2024-2027, que é o “Programa Cidadania em Rede”, que passa pela sensibilização e conscientização. A nossa sociedade precisa se conscientizar sobre a importância de cuidarmos uns dos outros. E isto é Cidadania, um direito de cada um poder ser livre e não ter medo, por exemplo, de uma mulher estar à noite num terminal de ônibus e ter a certeza que nada vai acontecer a ela porque a vida dela está sendo garantida.
O trabalho passa pela intersetorialidade, passa pela formação continuada de toda a comunidade sul-mato-grossense, o direito e a garantia à Justiça e a inserção econômica. É uma participação cidadã. E o governador Eduardo Riedel rompe um paradigma e cria a primeira secretaria da Cidadania. E o nosso papel é a conscientização e a efetividade das políticas públicas.
Nesta política de combater abusos, como você observa o trabalho integrado com as forças de segurança pública?
A Segurança Pública tem sido nossa grande parceira para que trabalhemos juntos, começando dentro de casa, por meio de cursos preparatórios que os policiais civis e militares participam e compreendam os grupos e recortes sociais e que toda a sociedade se sinta integrada com a segurança pública.
O papel da Cidadania é pensar de forma muito concreta para um policiamento cidadão. E isto passa pela humanização e pela conscientização e formação. Temos resultados, por exemplo, dentro das comunidades indígenas os conselhos de segurança comunitária, que estão lá dentro e sabem o que está acontecendo e que transmitem junto com a polícia civil e militar uma segurança no território indígena.
A senhora acredita e observa que o mercado de trabalho está olhando esses grupos sociais, além do que está previsto em leis?
Acredito muito que estamos nesta construção. A garantia em lei ainda é necessária, isso é de suma importância para a conscientização e a sensibilização, porque do contrário não haveria necessidade de Casa de Leis. Mas, percebo que os empresários e os gestores estão sensibilizados de que o capacitismo não passa por uma deficiência. Temos pessoas com deficiência visual que são excelentes programadores de informática. Temos fotógrafos com Síndrome de Down. Qualquer deficiência não é uma limitação e precisamos entender que a limitação passa pela nossa cabeça e falta do nosso conhecimento.
Também percebo isso nos Estados Unidos, onde pessoas que poderiam estar aposentadas estão trabalhando em supermercados, em bancos, porque a experiência daquele cidadão ou cidadã é muito bem-vinda para a efetividade do trabalho seja muito melhor e ainda mais de me sentir representada.
A comunidade LGBTQIA+ tem contribuído muito com o setor turístico, seja na compra de pacotes de viagens e passeios no Mato Grosso do Sul ou trabalhando dentro desta cadeia produtiva. Se reconhecer e ter este sentimento de pertencimento ao entrar num hotel faz toda a diferença e mostra que o Estado está olhando para os grupos sociais e que não são eles que limitam a capacidade profissional. Isto tem sido trabalhado junto com a Cidadania e com o poder privado essa sensibilização.
Apresentamos a tecnologia social para grandes grupos empresariais, Abrasel, a FIEMS (Federação das Indústrias do Estado de Mato Grosso do Sul), a Escola de Saúde, no sentido de olharmos todos esses recortes sociais e que possam estar inseridos dentro da empregabilidade do Mato Grosso do Sul.
O empoderamento feminino, a parada do orgulho gay, as religiões de matriz africana, a inclusão de idosos e pessoas com deficiência no mercado de trabalho são todas manifestações e atitudes atreladas à pasta da Cidadania. Mas, como de fato podemos observar daqui pra frente a cultura destes grupos de forma inclusiva na sociedade?
A cultura é a forma mais popular da Cidadania, de fácil acesso e entendimento. Não tem como não participar das manifestações culturais. Na Antropologia se diz que a cultura é a humanidade porque a nossa raiz passa pela cultura e tradição. E nesses grupos de representatividade tão grande e que fazem a identidade do Mato Grosso do Sul nos movem com orgulho e pertencimento.
Fortalecer os movimentos culturais e celebrações nos fazem ainda mais cidadãos e cidadãs do Mato Grosso do Sul.
Nós fizemos o planejamento de 2024 com todos os secretários e temos muitos desafios à frente para que os grupos sociais se sintam contemplados e a participação cidadã seja de fato e de direito.
Acredito que dentro do Governo do Estado, com unidade de governo, para que, por exemplo, as mulheres tenham maior acessibilidade na empregabilidade, no empreendedorismo. Fizemos uma conversa e convidamos as matrizes africanas para entender quais são as necessidades.
O governador Eduardo Riedel fala muito em trabalhar de dentro pra fora. Isso na Antropologia significa ouvir e entender as demandas, e trabalhar as políticas públicas para que a sociedade se reconheça naqueles anseios.
Para finalizar, qual a mensagem para a sociedade em relação ao enfrentamento e inclusão social? Podemos nos surpreender com algo inovador e o legado cidadão?
O Governo iniciou com uma gestão de resultados. E a cidadania é também um legado, com uma Secretaria que olha as pessoas, que entende as demandas e trabalha incessantemente, desde janeiro de 2023, enquanto eu estava adjunta, para que os direitos sejam garantidos.
A cidadania é participação e exercício social. Eu convido cada cidadão e cidadã a participar desta gestão do Governo de Mato Grosso do Sul para que façamos diferente para cada vida.
Eu não tenho como não lembrar da Viviane menina, lá dos Rouxinóis, onde não tinha asfalto e para chegar no centro da cidade, como minha mãe dizia, não podíamos trazer o barro da periferia. Então, nosso dever é olhar as regiões periféricas dos 79 municípios e trazê-los para a Secretaria de Cidadania.